quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

....confissão policial e a tortura (ontem e hoje)....



 

Supervalorizar elemento de inquérito é combustível para abuso da repressão


 

No Princípíos Penais no EstadoDemocrático, discuti no capítulo (Humanidade das Penas), a questão da valorização dos elementos de inquérito, como combustível para a manutenção de abusos na repressão –em especial a própria tortura.

 

“Mas a ideia de que a Constituição é suficiente para impedir o tratamento degradante e o desumano nas detenções, prisões provisórias ou cumprimentos de pena, no entanto, é nada mais do que simbólica.

As violações cotidianas a olhos vistos são várias: presos que acabam de ser detidos  exibidos em programas televisivos vulnerando a privacidade e o direito ao silêncio; cidadãos submetidos, sem fundamentação, a revistas vexatórias e imotivadas nas ruas; pessoas presas para “averiguações”, sem cometimento de quaisquer crimes.

A mais persistente violação ainda é a tortura, empregada não apenas como elemento ativo de investigação, como uma espécie de sanção cautelar fora da legalidade ou jurisdição.

A supervalorização dos elementos de inquérito também é decisiva para a manutenção de práticas policiais que comprimem, quando não anulam, as possibilidades de defesa.  

Inexplicavelmente, não apenas a confissão policial continua sua sobrevida como prova aceita judicialmente (sob o jargão de que a confissão vale pela credibilidade e não pelo local em que é produzida), como ainda tribunais recepcionam como elementos de convicção a confissão informal(supostamente obtida no momento da prisão) e o silêncio do acusado –sob o argumento de senso comum de que inocentes jamais se calam.

A perseverança da validade dessas provas em processos penais compromete não apenas a ampla defesa e a própria ideia de jurisdição. É combustível para agigantar os elementos policiais no processo e, paralelamente, contribuir fortemente para a perpetuação dos abusos da repressão.

 

Vejo agora que a questão do valor da confissão policial teve importante destaque na análise do papel do Judiciário na ditadura, efetuada pela Comissão Nacional da Verdade.

Ainda que com frequentes denúncias de tortura, a validade das confissões extrajudiciais foi paradigma de jurisprudência, numa locução que empregamos até os dias atuais: confissões não valem pelo lugar em que são proferidas, mas pela credibilidade com que são reconhecidas. Uma forma razoavelmente sagaz de consagrar a omissão quanto à violação de direitos que não sejam explicitamente trazidas aos autos –em alguns casos, como o relatório destaca, as violências chegaram de fato ao conhecimento dos tribunais.

A jurisprudência da época, retratada no relatório da CNV em acórdão do ministro Cordeiro Guerra, todavia, se firma até os dias de hoje:

O inquérito policial ou militar pode conter provas, diretas ou indiretas, que, não infirmadas por elementos colhidos na instrução criminal, demonstrem a procedência da acusação, justificando a convicção livre do julgador

 

Confira:

 

RELATÓRIO DA COMISSÃO DA VERDADE, CAPÍTULO 17 (leia aqui)

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A jurisprudência do STF em recursos ordinários criminais a partir de 1969

(35) Suspensa a garantia de HC, o STF continuou se manifestando a respeito de acusações de crimes contra a segurança nacional, quando instado por meio de recursos ordinários criminais (RC).

De acordo com pesquisa conduzida por Swensson Junior, durante o regime militar de 1964, o STF julgou 292 recursos ordinários criminais relativos a 565 réus – a grande maioria, recursos apresentados pelos acusados contra decisões que lhes eram desfavoráveis –, negando provimento a 376 réus, na maior parte das vezes por unanimidade. No período entre 1969 e 1974, foram 127 os recursos e 222 réus; no período de 1975 a 1979, 143 recursos e 312 réus.

(36). Com fundamento nesses recursos, o STF estabeleceu o entendimento de que as confissões extrajudiciais – aquelas obtidas na fase do inquérito policial militar, muitas vezes sob tortura – seriam admissíveis como prova quando testemunhadas e não contrariadas por outras provas (RC 1.254, ministro relator Moreira Alves, julgado em 2 de abril de 1976; RC 1.261, ministro relator Moreira Alves, julgado em 10 de fevereiro de 1976).

Como assentado no RC 1.255, as “confissões judiciais ou extrajudiciais valem pela sinceridade com que são feitas ou verdades nelas contidas” (RC 1.255, ministro relator Cordeiro Guerra, julgado em 20 de agosto de 1976). Em um dos julgados sobre essa questão (RC 1.234, julgado em 25 de abril de 1975), embora se tenha entendido que as evidências existentes contra os acusados não convenciam, o ministro relator Cordeiro Guerra não deixou de sublinhar a importância atribuída às confissões feitas nos inquéritos, mesmo quando houvesse denúncia de obtenção mediante tortura: Não acolho, porém, a orientação doutrinária esposada pela douta Procuradoria-Geral da República, de que todas as confissões extrajudiciais, pelo simples fato de serem repelidas em juízo, sob a  alegação de terem sido prestadas por coação, não comprovada de qualquer modo, devem ser havidas como destituídas de valor probante.

[...] O inquérito policial ou militar pode conter provas, diretas ou indiretas, que, não infirmadas por elementos colhidos na instrução criminal, demonstrem a procedência da acusação, justificando a convicção livre do julgador. [fls. 85-86]

 

3 comentários:

  1. Antônio Luiz Paixão já falava, em um artigo de 1982, da prática do inquérito policial feito de trás para a frente. Encontra-se primeiro o autor para depois descobrir, via tortura, o crime que ele cometeu. O Guaracy Mingardi identificou, em sua pesquisa de mestrado, uma verdadeira cultura que junta "prisão para averiguação", tortura e acerto com o advogado de porta de cadeia. Eu mesmo já ouvi em sala de aula, de policiais "das antigas", que "bom mesmo era antes de 1988, quando podíamos encher a barca (a lúgubre Veraneio que virou símbolo da repressão) na madrugada, levar de manhã para delegacia e arrancar da malandragem o que andaram fazendo." E já ouvi de presos falas que chancelam esse modus operandi. "Essa cadeia que estou pagando é de um flagrante armado, mas a polícia queria me prender por um crime que eles sabiam, mas não tinham provas." Vigora ainda, muitas vezes, a própria ideia de quem investiga, julga e pune é a polícia e não a justiça. Enfim, essas situações não deixam de ser ecos da ditadura, ou sustentados e ampliados pela ditadura, que o nosso trabalho desmemória ajuda a perpetuar.

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  2. Belíssimo texto, como sempre! O senhor saberia dizer se os livros do "Entender Direito" serão atualizados em 2015? Abraço

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  3. Bem acrescido, Carlos.

    Em 2015, sai outra leva de livros da Coleção Para Entender Direito, com mais 11 títulos. Não é atualização.

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